"PL da devastação" simboliza perigosa contradição entre discurso e prática na política ambiental brasileira 111x6
Possível aprovação do projeto de lei que flexibiliza licenciamento ambiental conta com leniência do governo federal por conta do interesse na exploração de petróleo no foz do rio Amazonas 694ay
O projeto de lei 2.159/2021, conhecido como "PL da Devastação", está a poucos dias de ser aprovado pelo Congresso Nacional. Sem meias palavras, o projeto tem potencial para essencialmente extinguir o sistema de licenciamento ambiental brasileiro. Apesar do discurso ambientalista do presidente Lula, o projeto aparentemente conta com a aprovação tácita do governo federal. Mesmo que o presidente vete a lei após sua aprovação, os blocos antiambientais no Congresso Nacional terão mais do que os 60% dos votos necessários em cada casa para derrubar o veto. g1b6j
O "PL da devastação" foi aprovado pela primeira vez pela Câmara dos Deputados em 13 de maio de 2025, por uma votação de 290 a 115 . Na ocasião, o presidente Lula permaneceu em silêncio, e não apoiou sua ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, na oposição ao projeto.
O projeto então foi para o Senado, onde recebeu emendas que aumentaram ainda mais seu impacto ambiental, e foi aprovado no dia 23 de maio. Mais uma vez, o presidente não se posicionou.
Agora, o PL voltou à Câmara dos Deputados, onde o presidente da casa pretende colocá-lo em votação na terceira semana de junho.
Enfraquecimento progressivo 3y4e4d
O sistema de licenciamento ambiental no Brasil tem sido progressivamente enfraquecido desde que entrou em vigor em 1986, e desde a adoção da atual constituição em 1988, que em suas páginas garante o direito a um "meio ambiente ecologicamente equilibrado". E os iminentes retrocessos no projeto de lei atual são ainda piores que os de ataques anteriores ao sistema. Incluindo aqueles do governo Jair Bolsonaro, que foi explicitamente anti-ambientalista.
O "PL da devastação" tem sido promovido como um alívio de burocracia para projetos de "baixo impacto", mas é muito mais do que isso. Primeiro, a definição de projetos de "baixo" e "médio" impacto é vaga, permitindo que projetos com impactos maiores sejam beneficiados.
O projeto de lei se aplica ao licenciamento tanto em nível estadual quanto federal, e em nível estadual espera-se que haja uma "corrida para o fundo do poço" à medida que os estados competem para atrair investimentos por meio do afrouxamento das restrições ambientais.
A categoria de "impacto médio" é um nome impróprio, pois inclui a maioria dos projetos de mineração, como as barragens de rejeitos de mina que se romperam em 2015 em Mariana e em 2019 em Brumadinho, dois dos piores desastres ambientais do Brasil.
Autolicenciamento: cliques em formulários online 544xf
Segundo o projeto de lei, os projetos de impacto "baixo" e "médio" seriam licenciados pelo que é conhecido como "autolicenciamento", oficialmente chamado de "Licença por Adesão e Compromisso" ou LAC. Isso elimina a necessidade de uma avaliação de impacto ambiental, audiências públicas, especificação de medidas compensatórias em caso de acidentes ou outros impactos, e qualquer revisão técnica por autoridades ambientais. Basicamente, essa declaração autodeclarada consiste em clicar numa série de caixas em um formulário online.
Os projetos que se tornariam autolicenciados atualmente representam 90% dos projetos licenciados pelo órgão ambiental federal (IBAMA), de acordo com Suely Araújo , ex-chefe do órgão. O projeto de lei, conforme alterado, também elimina importantes restrições legais ao desmatamento na Mata Atlântica brasileira, que já é um ecossistema altamente ameaçado.
Escapando de qualquer debate público ou nas comissões do Senado, logo antes da votação do plenário uma emenda de última hora conseguiu aumentar enormemente o potencial de impacto ambiental do projeto de lei.
A emenda criou uma "Licença Ambiental Especial", ou LAE, que permitiria que qualquer projeto considerado "estratégico" tivesse um processo de aprovação acelerado, independentemente da magnitude de seus impactos. O órgão licenciador teria um prazo de um ano para aprovar o projeto, após o qual a licença seria aprovada automaticamente. A escassez perene de pessoal no IBAMA torna provável que isso seja uma ocorrência frequente.
Emenda sem debate favorecerá projeto de petróleo no Amazonas 61m46
A definição de quais projetos são "estratégicos" seria feita por um conselho representando interesses políticos. Acredita-se que a emenda tenha a intenção específica de facilitar o controverso projeto de petróleo na foz do rio Amazonas, que tem grandes impactos potenciais tanto de derramamentos de petróleo potencialmente incontroláveis quanto de seu impacto nas mudanças climáticas. A emenda foi introduzida pelo presidente do Senado Davi Alocumbre, que representa o Amapá, o estado que espera uma bonança financeira dos campos petrolíferos adjacentes na foz do Amazonas que aguardam uma licença ambiental. Ele também tem grande influência sobre o presidente Lula devido ao seu domínio sobre a aprovação da legislação pelo Senado.
Espera-se também que o novo mecanismo para projetos "estratégicos" beneficie outras iniciativas de alto impacto, como a reconstrução da rodovia BR-319 que, juntamente com suas estradas vicinais planejadas, abriria cerca de metade do que resta da floresta amazônica brasileira à entrada de desmatadores. Uma lista de grandes hidrelétricas desejadas pelo Ministério de Minas e Energia também aguarda um caminho para aprovação ambiental.
O iminente desastre climático do Brasil 62o6g
O clima global e a floresta amazônica estão se aproximando de pontos de não retorno onde o processo de colapso escapa do controle humano. Esses desastres iminentes estão interligados: se a floresta amazônica entrasse em colapso, ela liberaria gases de efeito estufa mais do que suficientes para empurrar as temperaturas globais além do ponto de não retorno.
A floresta amazônica já está à beira desse ponto. Além da temperatura, o aumento contínuo na duração da estação seca, a porcentagem de floresta desmatada e uma combinação de vários outros impactos climáticos e antropogênicos já provocam essa situação.
A perda da floresta amazônica sacrificaria o papel vital da floresta na reciclagem de água. Um volume de água maior que a vazão total do rio Amazonas é liberado como vapor d'água pelas folhas das árvores, proporcionando chuvas que não apenas mantêm a floresta, mas também a agricultura e o abastecimento de água das cidades em outras partes do Brasil e em países vizinhos.
O vapor d'água é transportado pelos ventos conhecidos como "rios voadores" para São Paulo, a quarta maior cidade do mundo, que depende desse abastecimento de água. Grandes secas em São Paulo, como as de 2014 e 2021, estão aumentando em frequência e intensidade devido às mudanças nas temperaturas do oceano relacionadas ao aquecimento global, e espera-se que essa tendência aumente.
Um "efeito estufa descontrolado" seria catastrófico para o Brasil. A frequência de grandes secas aumentaria em pelo menos dez vezes comparado com a média histórica. A região semiárida do Nordeste brasileiro se tornaria um deserto, presumivelmente expulsando as dezenas de milhões de pessoas que dependem da agricultura nessa região.
A agricultura familiar e o agronegócio em todo o país seriam fortemente impactados. A elevação do nível do mar e o aumento das tempestades impactariam a grande população que vive ao longo da costa atlântica do Brasil. "Surpresas climáticas" não previstas em modelos do clima, como as enchentes de 2024 em Rio Grande do Sul, se tornariam mais frequentes.
Destruição da Amazônia com apoio do governo 3p6628
Diante dessas perspectivas catastróficas, o governo brasileiro deve agir de forma decisiva para deter as emissões de gases de efeito estufa do país e liderar o mundo no combate às mudanças climáticas. Essas necessidades estão interrelacionadas, visto que a liderança eficaz se dá pelo exemplo, e o Brasil não pode continuar a simplesmente exortar outros países a reduzirem suas emissões quando suas decisões internas estão contribuindo para o aumento do aquecimento global. E isso inclui o "PL da devastação" .
O Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima está fazendo um bom trabalho para reprimir o desmatamento por meio de comando e controle, mas essencialmente todo o resto do governo está agindo para aumentar as emissões. O Ministério dos Transportes está pressionando para reconstruir a rodovia BR-319 com o apoio do Presidente Lula (veja aqui, aqui e aqui).
O Ministério da Agricultura está subsidiando a soja e a conversão de pastagens para soja, que é um dos principais impulsionadores do desmatamento, já que os pecuaristas que vendem suas terras valorizadas para plantadores de soja usam o dinheiro das vendas para comprar e desmatar áreas muito maiores de floresta amazônica barata.
O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) legaliza ocupações ilegais e reivindicações de terras em terras públicas, proporcionando assim um estímulo constante para mais invasões e grilagens de terras. O próprio presidente Lula já declarou sua intenção de criar uma "prateleira" de terras governamentais não designadas (as chamadas "terras devolutas") para distribuição desta forma.
Petróleo a ser extraído "até à última gota" 1c3i2z
A rápida eliminação do uso de combustíveis fósseis é fundamental para conter o aquecimento global. A quantidade pela qual a sociedade humana deve reduzir suas emissões e a trajetória temporal que essa redução deve seguir são determinadas pela análise dos melhores dados e modelos climáticos disponíveis. O levantamento mundial "Global Stocktake" da Convenção do Clima, divulgado na COP-28 em 2023, mostrou que as emissões antrópicas precisam diminuir em 43% até 2030 em comparação com 2023, e em 84% até 2050, para permanecer dentro do limite atualmente acordado no Acordo de Paris de 1,5 ºC acima da temperatura média global pré-industrial. Este limite representa um ponto de não retorno tanto para o sistema climático global quanto para a floresta amazônica. Acima deste ponto há um aumento acentuado na probabilidade anual de retroalimentações incontroláveis levando o sistema a uma mudança catastrófica ou colapso.
Infelizmente, as políticas públicas e ações do Brasil estão do lado errado dessa questão. O atual ministro de Minas e Energia afirma que o Brasil continuará extraindo petróleo até que torne-se um país rico.
Com referência ao projeto da foz do Amazonas, o presidente Lula declarou recentemente que "nós não vamos jogar fora nenhuma oportunidade de fazer esse país crescer". Como o Brasil sempre desejará crescer, isso implica uma licença para extrair petróleo para sempre. A Petrobras declarou que a empresa planeja ser uma grande exportadora de petróleo em 2050 e além, aqui .
Leilão e pressão sobre o IBAMA 6r1c15
E para esse plano, o projeto da foz do Amazonas é crucial. Um grande leilão de direitos de perfuração, tanto em terra quanto no mar, está agendado para o dia 17 de junho, incluindo 47 blocos na foz do rio Amazonas. A aprovação ambiental do primeiro poço "experimental" (FZA-M-59) é vista como a chave para que as empresas petrolíferas internacionais estejam dispostas a comprar os direitos a esses blocos.
O presidente do IBAMA tem estado sob intensa pressão para aprovar o projeto e, em 19 de maio, ele ou por cima dos pareceres formais da equipe técnica do órgão para permitir que o projeto avançasse para a aprovação. O licenciamento envolve os riscos ambientais de potenciais derramamentos de petróleo, mas ignora a questão fundamental, que são as implicações de um projeto exploratório dessa dimensão para o clima global.
No debate sobre o licenciamento, o foco está quase inteiramente em se a Petrobras tem a infraestrutura e o pessoal para montar uma operação de resgate para a vida marinha em caso de um vazamento. Não se fala na questão mais básica, que é saber como estancar um possível vazamento de óleo no mar. E nesse caso, infelizmente há fortes indícios de que um vazamento, se ocorrer, não poderá ser resolvido a curto prazo, por conta da grande profundidade do mar naquela área, e das correntes oceânicas fortes e complexas na foz do Amazonas.
A abertura de novos campos de petróleo é incompatível com os objetivos globais de contenção do aquecimento global devido à lógica econômica desses projetos. Foi isso que levou a Agência Internacional de Energia (IEA) a recomendar que nenhum novo campo de petróleo ou gás seja aberto em nenhum lugar do mundo. No caso do projeto da foz do Amazonas, a expectativa é que se levaria cinco anos para iniciar a produção comercial e mais cinco anos para pagar o investimento. Como ninguém vai querer parar com lucro zero, o projeto tende a se estender por muitos anos mais - muito além do dia em que o mundo precisará parar de usar petróleo como combustível.
Argumento frágil 1g6t49
A Petrobras alega que o projeto da foz do Amazonas e outros novos campos de petróleo planejados são necessários para a "segurança energética" do Brasil. O argumento é frágil, uma vez que o Brasil atualmente exporta mais da metade do petróleo que extrai, e espera-se que essa porcentagem aumente com a expansão planejada.
As reservas nos campos de petróleo já em produção no Brasil são muito maiores que a quantidade que pode ser consumido no país antes que o uso de combustíveis fósseis precise ser encerrado. Em outras palavras, a expansão da extração de petróleo no país é puramente uma questão econômica.
Outro argumento promovido pela Petrobras e pelo governo é que a receita do petróleo é necessária para pagar a transição energética do Brasil. Embora a transição deva de fato ser paga, ela deve ter um lugar garantido no orçamento anual do Brasil, como saúde e educação, e não ser tratada como algo opcional que depende de ganhos financeiros inesperados. Além disso, sabe-se que até o momento apenas uma porcentagem insignificante de 0,06%) da receita do governo com petróleo foi usada para projetos ligados à transição energética entre 2018 e 2025. A transição energética precisa ocorrer agora, e não daqui a vários anos no futuro, quando os novos campos de petróleo estiverem produzindo.
Philip Fearnside recebe financiamento o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico-CNPq, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas-FAPEAM, e Rede Brasileira de Pesquisas sobre Mudanças Climáticas Globais - Rede Clima.