Tão importantes quanto os poemas, as imagens de capa são as únicas ilustrações dos poemas de cordel. Impulsionaram um método tradicional de impressão, a xilogravura, que a IA imita instantaneamente e sem custo. O mercado de lustradores está abalado – na reportagem de ontem, mostramos a polêmica da IA na poesia de cordel.
Enquanto os poetas parecem resistir mais ao uso de Inteligência Artificial (IA) para escrita de cordéis – folhetos rimados com histórias populares de origem nordestina – as capas estão sendo produzidas em grande quantidade, abalando o mercado e a tradição. 1m505d
O poeta Paiva Neves, 61 anos, de Maracanaú, Região Metropolitana de Fortaleza, diz que “reduzir o custo do pagamento de um ilustrador, de um xilógrafo de verdade, além de cortar a fonte de renda de alguém, reduz o valor do trabalho enquanto artista”.
O cearense Cayman Moreira, 63 anos, ilustrador, quadrinista e poeta de cordel, diz que “muitas pessoas” que o contratam pedem para não usar IA. “Eu digo logo: nem precisa pedir, eu tenho abominação desse recurso covarde, ladrão, desonesto, altamente desonesto.” Ele reclama de quem diz que ele “é careiro”, sugerindo “pegar ilustração de inteligência artificial, botar na capa e acabou”.
Para Lucélia Borges, xilogravurista baiana radicada em São Paulo, a IA desconsidera direitos autorais, usando imagens da internet como “terra de ninguém, mas são trabalhos de autores”. Ela se preocupa com a tendência que, “se chegar nas grandes editoras, vai eliminar o mercado. Depois, como como você vai questionar se, no início, você achou tudo bem?”, pergunta.
Ela também critica a padronização estética da capas geradas por IA, “são todas iguais”. A falta de traços autorais e de identidade local é apontada também pelo cearense Klévisson Viana, referência na produção e edição de cordéis e ilustrações. “As imagens são extremamente previsíveis a daqui a pouco tempo vamos começar a nos cansar delas. Está desprestigiando o trabalho, é um tiro no pé”, acredita.
Artistas são contra IA produzir poemas, mas não imagens 1t4l5c
O cordelista cearense Chico Fábio é um dos provocadores do debate. Contrário à tecnologia para escrita de poemas, compôs dois cordéis defendendo o uso da IA para geração de imagens porque entende que “a capa é só complemento”, escreveu no folheto A Ilustração de Cordel com Inteligência Artificial.
“Muita gente está me criticando”, diz Fábio, que usa a máquina “visando baratear o custo”. Ele informa nas capas quando ela foi gerada por IA. Seu colega, o baiano Antônio Barreto, autor de mais de 200 folhetos de cordel, contrário ao uso de IA para fazer poemas, também é a favor para produção de capas. “No caso da ilustração, a inteligência artificial ajuda”, diz.
Em Ribeirão Preto, interior paulista, o poeta Márcio Fabiano mantém uma pequena editora de cordéis. “A IA tomou conta de boa parte do mercado de capas”, constata. Seu capista “utiliza a inteligência artificial como começo da construção, mas ele transforma a imagem obtida, modifica, porém muitos pegam pronto”.
Quem não usa, mas pretende usar 305vw
Há quem não usou IA, mas usaria, só não teve oportunidade, além de quem terá que usar porque será inevitável. Ana Ferraz, da editora Coqueiro, do Recife, fundada em 1991, diz que “ainda não apareceu um projeto que interessasse trabalhar com inteligência artificial. Mas eu não tenho dúvida de que vai acontecer”.
Especializada em cordéis e literatura popular, a Coqueiro publicou mais de 2 milhões de exemplares. “Claro que pretendemos implantar logo, com certeza”, diz a editora. Assim como ela, a cordelista e ilustradora cearense Arlene Holanda percebe o uso inevitável da IA, prevendo que “uma grande fatia do mercado editorial” usará “especialmente na ilustração”.
Será uma “questão de custo”, mesmo com as atuais proteções legais em editais de livros, que impedem o uso de IA. “Creio que, num cenário presente e futuro, é uma tendência irreversível. Em vez de combater um inimigo decerto invencível, melhor desenvolver estratégias para utilizar de modo produtivo e, porque não dizer, criativo?”, pergunta a artista.