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Gringas desfilam na Sapucaí e até aprendem português para ter gingado brasileiro  Foto: Catarina Carvalho/Redação Terra

Borogodó com sotaque: gringas desfilam na Sapucaí e até aprendem português para ter gingado brasileiro

Sob a batuta de Carlinhos Salgueiro, a ala de istas da escola do Andaraí acolhe de canadenses a dinamarquesas

Imagem: Catarina Carvalho/Redação Terra
  • Catarina Carvalho, do Rio de Janeiro Catarina Carvalho, do Rio de Janeiro
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1 mar 2025 - 04h59

Eram quase oito da noite de uma terça-feira de verão e o calor não fazia nem sinal de trégua no Rio de Janeiro. Enquanto alguns turistas arriscavam um banho de mar, na quadra do Salgueiro a história era outra. Na sede da escola de samba, no Andaraí, um grupo de mulheres se reuniam para ensaiar o samba no pé e fazer bonito na avenida, na segunda-feira de carnaval, 3. Quem vê de longe não imagina que, entre tantas brasileiras, estão istas do Canadá, Dinamarca e até da Austrália. 

De fora da quadra, os que am conseguem ouvir: “5, 6, 7 e 8. Vamos, gente!”. É a voz de Carlinhos Salgueiro anunciando que ali dentro está acontecendo uma verdadeira aula de samba. O enérgico diretor da ala das istas do Salgueiro é o responsável por ‘destravar’ o molejo do samba em alunas de dentro e fora do Brasil. 

Além de ser uma figuraça, Carlos Borges - seu nome de batismo - é considerado o Embaixador do Samba Internacional e já foi agraciado com o título de rei do carnaval na Austrália e na Inglaterra, além de ter se tornado embaixador da folia na Alemanha.

Carlinhos Salgueiro é embaixador internacional do samba
Carlinhos Salgueiro é embaixador internacional do samba
Foto: Reprodução/Instagram

Foi levando o samba para o mundo que o bailarino carimbou o aporte em 34 países e apresentou o mais brasileiro dos ritmos para estrangeiros ao redor do globo. 

Por isso mesmo, a aula de samba de Carlinhos Salgueiro conta com a presença de ‘gringas’ que se apaixonaram pelo gênero e dão tudo para se aprimorarem cada vez mais: desde viagens a cada verão e até mesmo um ‘intensivão’ de português, elas mostram que o borogodó é intraduzível, mas pode vir com sotaque.

As gringas se afinavam na folia

“Naquela hora, eu sabia que tinha mexido comigo.” A canadense Raphaëlle Charron, de 30 anos, descreve de maneira quase cinematográfica o seu primeiro contato com o samba. A jovem tinha apenas 17 anos quando chegou em um novo colégio, decidida a experimentar algo novo: a dança. 

Para sua sorte, um professor de samba foi convidado para dar uma aula e Raphaëlle achou uma boa ideia participar. O bailarino não era brasileiro, mas conseguiu transmitir a paixão no molejo que tentava ensinar. 

Ao final da aula, a canadense, que nunca teve contato com a dança até então, não se via mais longe da cadência.

“A única coisa que eu pensei era: vou buscar mais, preciso entender o que estou sentindo ouvindo uma bateria, ouvindo um samba. Quando você está mexendo o seu corpo, seu quadril, há uma sensação de muita liberdade”, tenta descrever. 

As canadenses Selina e Raphäelle aprenderam português por conta do samba
As canadenses Selina e Raphäelle aprenderam português por conta do samba
Foto: Reprodução/Instagram

O ‘clique’ mágico também aconteceu com a canadense Selina Melo, de 33 anos, mas através de um amigo brasileiro. Aos 18 anos, o colega lhe apresentou músicas do Brasil e até fez um CD para dar de presente a ela. 

“Escutei e pensei ‘nossa, que legal’. Me tocou muito. Pesquisando um pouquinho, vi um vídeo sobre o samba e resolvi que queria aprender essa dança”, relembrou. O desejo, no entanto, ficou adormecido. “Eu estava num período da minha vida onde tive muitos problemas, muitas coisas acontecendo com a minha família, então eu não podia realmente me dedicar a isso”, ite. 

O tempo certo chegou um pouco depois, quando Selina já estava cursando psicologia em uma universidade de Montreal. “Encontrei uma brasileira em Montreal que estava dando aulas, então eu comecei”, conta. 

Se Raphaëlle e Selina descobriram o samba por coincidência do destino, a dinamarquesa Sophia Maria Fonseca, de 31 anos, não existiria se não fosse o gênero. Isso porque seus pais se conheceram em uma escola de samba em Copenhague, nos anos 1980. 

Sophia Maria desfila pelo Salgueiro
Sophia Maria desfila pelo Salgueiro
Foto: Reprodução/Instagram

O pai da ‘gringa’ ainda é mestre em capoeira e tem até um centro no Rio de Janeiro. “Cresci no samba e comecei a fazer aulas quando tinha seis anos”, diz. “Então, em 2018, decidi viajar para cá sozinha pela primeira vez. Fiquei seis meses com meu irmão, que também é capoeirista”, relembra. 

Desde o primeiro contato dessas mulheres com o samba, o gênero nunca mais saiu de suas vidas. Cantado em português, nascido na Bahia e reinventado no Rio de Janeiro, o gingado marcou a memória das estrangeiras e as gringas aram a tentar se afinar na folia, como celebra o Olodum em Nossa Gente, de 1992. 

Gingado com compromisso

Entre sair de Copenhague e se dedicar ao samba no Brasil, levou um tempo para Sophia. A dinamarquesa frequentava o Salgueiro desde criança, em viagens com a tia. Mas foi só em 2018 que decidiu se aprofundar no gênero e mergulhar na cultura brasileira. 

“Eu sabia que se fosse trabalhar com samba, para aprender, melhorar e evoluir eu também deveria me educar e entender mais sobre a cultura”, argumenta.

A convite de Carlinhos, ela ou a acompanhar as aulas da ala de istas nos preparativos para o carnaval. 

Apesar de ter optado por dar entrevista em inglês, a dinamarquesa desenrola bem o português. Quem também conversa muito bem no idioma e até arrisca um sotaque carioca são as canadenses.

A facilidade é explicada pelo tempo que Raphaëlle já dedica ao samba. Afinal, são 12 anos se aprimorando no gênero e uma década vindo ao Brasil. Para o primeiro destino da viagem, ela escolheu o estado que foi berço do samba, a Bahia. 

Gringas desfilam na Sapucaí e até aprendem português para ter gingado brasileiro
Gringas desfilam na Sapucaí e até aprendem português para ter gingado brasileiro
Foto: Catarina Carvalho/Redação Terra

“Comecei a minha viagem em Salvador para entender um pouquinho mais as danças afro-brasileiras e eu fiz um um curso na FUNCEB [Fundação Cultural Do Estado Da Bahia]”, comenta. 

Aprender o português também fez parte da estratégia da canadense para mergulhar de vez no samba brasileiro. “Fiz algumas aulas antes de vir para o Brasil, porque eu queria realmente entender as letras, as músicas, as aulas, já que a maioria dos professores falam português… Queria lidar um pouco mais com a cultura”, diz. 

Todo o empenho resultou em um verdadeiro encontro com o Salgueiro, em 2020. “Consegui esse sonho, o Carlinhos me deu a oportunidade de desfilar como ista”, se emociona. 

Com Selina, o amor pelo samba cresceu ainda mais quando pisou no Brasil pela primeira vez, em 2018. “Fiz aulas com muitos professores diferentes e foi como amor à primeira vista. Eu me apaixonei pela cidade [Rio], pelas pessoas aqui e também foi desafiador também, porque o nível aqui é muito mais alto, né">

Selina e Raphäelle gerenciam uma escola de dança com foco em samba em Montreal
Selina e Raphäelle gerenciam uma escola de dança com foco em samba em Montreal
Foto: Reprodução/Instagram

Em 2025, ela completa sua sexta viagem ao Brasil por conta do samba. No ano ado, Selina chegou a desfilar como ista pelo Salgueiro e repetirá o feito este ano, ao lado das colegas Raphaëlle e Sophia. Com Raphaëlle, aliás, a canadense gerencia hoje uma escola de dança focada em samba lá em Montreal, sua cidade natal.

'Apreciação, não apropriação'

“Sempre entro na quadra de forma muito humilde, porque sou uma mulher branca e preciso ter consciência de que não é minha história que está sendo contada”, observa Sophia. Mesmo apaixonada pelo ritmo, considerado um dos pilares da cultura afro-brasileira, a dinamarquesa destaca que não quer “tomar” espaços. 

A consciência de Selina também é a mesma. A canadense acredita que projetos de incentivo ao aprendizado do samba no mundo são importantes para disseminar a cultura do Brasil mundo afora.

“É um privilégio podermos participar e aprender diretamente com os professores daqui. Essa é a única maneira que saberemos mais sobre a cultura. Sem estar aqui, o que vemos lá fora são, às vezes, estereótipos, maneiras de dançar muito antigas”, explica. 

Sophia Maria é dinamarquesa e samba desde criança
Sophia Maria é dinamarquesa e samba desde criança
Foto: Reprodução/Instagram

Por amar o samba, Selina aprendeu a “pisar nesse chão devagarinho”. No carnaval, a ‘gringa’ se considera apenas uma visitante e pondera sobre a apropriação de espaços dedicados à cultura afro-brasileira. 

“Eu não quero fazer apropriação cultural. Não posso controlar o que as pessoas pensam de mim, mas eu posso controlar o que eu faço, posso controlar a intenção, o tempo que dedico para aprender o samba, o português, para me educar mais. Com isso, sinto que estamos fazendo mais uma apreciação cultural ao invés de apropriação”, defende.

Para Raphäelle, as opiniões dos brasileiros sobre a participação de gringas em desfiles de escolas de samba e em aulas de istas são dividas. "Eu não tenho todas as respostas. Para mim, é uma conversa aberta que sempre está presente. Tem os brasileiros que são super animados com o que a gente faz e dizem ‘uau, nunca tinha pensado que uma estrangeira poderia amar a nossa cultura desse jeito’. E também tem o oposto, quem não acha legal”, pondera. 

Apesar de considerar e ouvir com atenção as críticas, a canadense prefere focar na parte boa que o samba trouxe para sua vida. Segundo ela, viver o Brasil, nem que seja só no carnaval, é sorte pura. 

"Temos muita sorte de poder estar aqui e de viver e ver tudo o que acontece no Brasil, com a dança, arte e a cultura. Acho que temos uma sorte imensa de poder sentir essas coisas, porque o Brasil é um lugar muito, muito especial”, elogia. 

Raphäelle sempre viaja ao Brasil para aprimorar o samba
Raphäelle sempre viaja ao Brasil para aprimorar o samba
Foto: Reprodução/Instagram

Carnaval com legenda

Assim como Sophia, Selina e Raphäelle, Sashya Jay Brito veio de longe para sambar no Brasil. A bailarina é acostumada com a mistura. Filha de pais sul-africanos, ela foi criada na Jamaica e atualmente vive na Austrália com o marido brasileiro. Foi lá em Sydney, a mais de 14 mil km do Rio de Janeiro, que teve o primeiro contato com o gênero que viria a se tornar seu trabalho. 

“Comecei  com dança afro-brasileira e, ao mesmo tempo, comecei a fazer shows. Aí as pessoas ficavam perguntando: ‘você ensina samba">

A jamaicana Sashya Jay desfila como musa da Mangueira
A jamaicana Sashya Jay desfila como musa da Mangueira
Foto: Reprodução/Instagram

“Estávamos fazendo algo muito ‘cabaré’ antigo, muito show. Estava faltando a essência, a conexão do carnaval”, itiu. Foi quando Sashya decidiu voltar ao Brasil para “reaprender” a sambar e deu certo. A jamaicana entrou na ala das istas do Império Serrano em 2017, participou de desfiles do Salgueiro e hoje é musa da Mangueira. 

No mesmo período, Sashya conheceu Carlinhos Salgueiro, com quem ‘pegou no tranco’ com a dança e se sentiu confortável para voltar para a Austrália com uma bagagem ainda maior. “Ele me deu uma carta branca para ensinar a técnica dele”, ressalta. 

Atualmente, a jamaicana coordena a Escola de Samba Sydney e o Rio Projekt, um grupo show disponível para contratação em eventos na cidade australiana. No dia a dia da instituição, a maior preocupação de Sashya é não distanciar as aulas do que realmente acontece no Brasil. 

Sashya tem um projeto de samba em Sydney, na Austrália
Sashya tem um projeto de samba em Sydney, na Austrália
Foto: Reprodução/Instagram

“Temos três dias de aula toda semana, seis níveis de samba, aulas de funk, uma outra que chamamos de ‘raiz’, onde a gente volta às danças afro-brasileiras, além do axé e do pagodão, para dar essa essência para as estrangeiras, né? Porque é uma coisa para aprender técnica, mas você tem que sentir essa energia, de onde o samba veio”, defende.

A musa da Mangueira conta que as alunas são de nacionalidades variadas, mas, inevitavelmente, o público australiano é maior. Entre eles, a maioria se interessa em aprender o samba. No entanto, algumas pessoas chegam ao projeto mirando em uma ideia deturpada da cultura brasileira. 

“Existe um interesse genuíno de muitas pessoas. Por outro lado, ainda há uma expectativa de ver um espetáculo que não existe, porque é um estereótipo criado lá fora. Também existe, principalmente do público masculino, uma sexualização desse ofício”, critica.

“Há shows que o povo aqui chama de ‘bate bunda’, aqueles só para ganhar dinheiro em eventos, casamentos, restaurantes. E são esses que temos que tomar cuidado. Lá na Austrália, as pessoas veem as mulheres lindas nos biquínis e tem uma outra noção (...) Você tem que tomar cuidado fora do Brasil, porque aqui as pessoas entendem que faz parte da cultura, mas lá as pessoas não vão entender isso”, analisa.

Para Sashya, uma boa ista tem que saber sambar “elegante”. As alunas dela, que aprendem o “mandamento”, muitas vezes vão ao Brasil para desfilar nas escolas de samba. Desde que foi fundada, em 2016, a instituição da jamaicana até ajudou a ampliar a comunidade do samba em Sydney, graças à troca cultural e ao boca-a-boca.

“É uma coisa muito legal, mas também pode ser um pouco perigoso, porque quem está na frente da cultura brasileira fora do país, especialmente a gente que não é brasileiro, tem que tomar uma grande responsabilidade para representar algo que tem tanto respeito. Temos sempre que nos conectar ao Brasil para manter essa integridade. Não podemos criar qualquer coisa e falar: 'isso aqui é samba'”, rebate.

Através do projeto, Sashya desfila como musa da Mangueira no domingo, 2. Outras duas alunas também atravessam a Marquês de Sapucaí pelo Salgueiro no dia seguinte. Para a professora de dança, o objetivo é expandir o negócio e fazer todos brilharem juntos. Afinal, samba é comunidade. 

“Criei esse projeto porque não quero ficar nessa vida sozinha brilhando. Para mim não é interessante. Gosto de compartilhar com pessoas e ver outras pessoas felizes. Ninguém nessa vida está sozinho, né?”, frisa. 

Fonte: Redação Terra
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