
'Achava normal ser abordado pela polícia e levar tapa', diz Jeferson Tenório, autor de 'O Avesso da Pele' 58723i
O premiado autor só começou a gostar de livros depois dos 20 anos. Desde então, dedica sua vida e obra a mudar o mundo a partir das palavras 2p5h1a
Entre uma troca de fralda e outra do pequeno Theo, nascido em 19 de dezembro de 2024, Jeferson Tenório fala por vídeo-chamada da cidade de Vacaria, no interior gaúcho. O escritor mantém a expressão serena mesmo com as noites em claro cuidando do recém-nascido. A mesma tranquilidade com que responde sobre o significado de colocar um filho no mundo nos conturbados e incertos dias de hoje: “No fim das contas, eu sou um esperançoso”, define. 1k452a
Quem conhece a obra de Tenório logo reconhece na sua literatura esse ímpeto de construir uma realidade mais digna, empática e atenta às desigualdades. “O Avesso da Pele”, romance publicado em 2020 pela Companhia das Letras, colocou definitivamente o autor no radar de público e crítica e narra uma espécie de acerto de contas entre um filho e seu pai, depois da morte deste. É um livro que trafega entre o afeto e o bruto para falar de memória, racismo, violência e ancestralidade. Ganhou o prêmio Jabuti de melhor romance literário.
Uma das primeiras imagens registradas do bebê Theo, publicada na conta de Jeferson Tenório em 2 de janeiro, traz pai e filho entretidos com as ilustrações coloridas do livro infantil O Rato Roeu a Roupa, escrito por Ana Maria Machado. O contato do pequeno com as páginas desde (muito) cedo é uma questão essencial de sua parentalidade. Já tinha sido assim com o primogênito João, hoje com 15 anos. “Ele até acha estranho quando vai na casa de alguém e não vê livros lá”, conta. “Formar um leitor, na verdade, não é forçar a criança a ler, mas que o livro faça parte do cotidiano dela, independentemente do que ele vai escolher para fazer da vida.”
A preocupação tem como base justamente algo que não aconteceu com ele próprio. Os livros só entraram com força na vida de Tenório na idade adulta, aos 24 anos. Até então, considerava a literatura algo fora de seu alcance, longe das prioridades de quem vivia numa família simples, obrigada a mudar de endereço em várias ocasiões e com necessidades mais imediatas. Um livro de contos assinados por Rubem Fonseca, indicado então por um professor, foi responsável pela virada de chave. “Foi quando eu descobri que a literatura poderia ser mais fluente, moderna, com gírias e palavrões, sem respeito à gramática tradicional”, relembra. “Quando eu descobri que a literatura poderia ser isso, então o mundo se abriu e eu comecei a ir atrás de livros que fossem parecidos.”
O autor chama de “frenesi” o que viveu depois: “ei dois ou três anos comprando livros, pegando emprestado, indo em bibliotecas públicas, ava horas em sebos procurando livros mais baratos. Deixei de pagar a faculdade para comprar livros, porque eu estava correndo atrás do tempo perdido”, descreve. “Parecia que eu sentia raiva do mundo, porque eu ficava me perguntando como ninguém me disse que a leitura poderia me dar isso, né? E aí, com essa raiva, eu comecei a ler e a colecionar livros.”
O mundo pelos livros 6x2a61
“Tudo que eu me tornei hoje foi graças aos livros”, resume. “Muito mais do que a escrita, a leitura me abriu uma possibilidade de vida que eu não conhecia antes”. Jeferson Tenório nasceu no Rio de Janeiro e, aos 13, se mudou para o Rio Grande do Sul, estado natal da mãe. Estabeleceu-se em Porto Alegre e, mais tarde, prestou vestibular para Arquitetura, na PUCRS. ou, mas não fez o curso, já que não tinha como pagar a mensalidade com o salário que ganhava como office-boy. Como gostava de ler jornais, optou então pela Faculdade de Letras na antiga FAPA (Faculdade PortoAlegrense), onde o valor desembolsado seria menor. Foi ali que nasceu a vontade de viver rodeado por livros, e uma mudança completa em sua relação com o mundo.
“Se eu tivesse chegado mais cedo aos livros, talvez tivesse sofrido menos do que eu sofri na vida”, avalia. “Até os meus 20 anos, para mim era normal você ser abordado pela polícia, levar tapa, ser xingado, e achar que isso tem que acontecer mesmo, sem nenhum tipo de questionamento. Eu acho que a privação da literatura, num período que é importante, a adolescência, a juventude, fez com que eu não me desse conta das violências que eu ava.”
Eu escrevo livros porque eu acredito em alguma coisa, acredito que a gente pode deixar o mundo um pouco melhor. Fazer uma criança também é um pouco essa expectativa de poder criar um cidadão, uma pessoa para o mundo, para a gente tentar melhorar de alguma forma.
Com a consciência aguçada, Tenório refinou suas escolhas. Decidiu prestar vestibular para a Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Entrou em 2004, como um dos primeiros beneficiados pela política de cotas raciais. Teve contato com olhares de desconfiança e questionamentos. A experiência, revista com um distanciamento de duas décadas, serviu de base para “De Onde Eles Vêm”, romance publicado no final de 2024. O protagonista da trama, o jovem Joaquim, é um cotista às voltas com o desafio de equilibrar os estudos, o cuidado com a avó doente com quem mora, e um contato conflituoso com as obras de grandes autores.
É o quarto livro que traz o nome de Jeferson Tenório na capa, e o que mais tem contornos autobiográficos. “O Joaquim é uma espécie de alter ego, mas eu só consegui escrevê-lo justamente porque eu já tinha tido experiências anteriores de escrita, o que me deu uma segurança para poder fazer um personagem que é próximo de mim e ao mesmo tempo é alguém que eu gostaria de ter sido”, compara.
Em muitos sentidos, o processo de escrita de “De Onde Eles Vêm” foi o mais dolorido da carreira do autor. Não necessariamente pelo enredo em si, mas pela pressão de estar sob os holofotes, após o sucesso de “O Avesso da Pele”. Nos quatro anos entre um romance e outro, foi perguntado por amigos, leitores, colegas, imprensa e editores quando viria seu próximo lançamento. “Eu tive que usar muito a minha paciência para não atropelar a história, ou seja, permitir que eu pudesse dar tempo ao texto”, revela. “Não queria desperdiçar páginas, então pensei muito, até ficar quase doente”. Perto do término do livro, Tenório teve cálculo renal. “Nunca tive uma dor tão terrível. Era o momento que o meu corpo estava me dizendo, ‘para, você precisa parar’”. Com a pedra no rim eliminada, a criatividade voltou a fluir e em poucas semanas o livro estava entregue.
Houve uma intersecção com o racismo. O alvo [da censura] não é qualquer livro, é ‘O Avesso da Pele’, um livro escrito por um autor negro cuja história é sobre um professor negro que morre assassinado por policiais.
No meio disso tudo, Tenório ainda viveu contradições do sucesso de “O Avesso da Pele”. Ao mesmo tempo em que o livro foi selecionado como leitura obrigatória em alguns colégios de ensino médio e em vestibulares como o da UFRGS, também foi censurado pelos governos de Mato Grosso do Sul, Goiás e Paraná. Em março do ano ado, chegaram a recolher exemplares dos livros das bibliotecas públicas de seus estados, alegando que o livro contém expressões impróprias para menores de 18 anos. “Esse episódio fez com que a gente se desse conta que é muito fácil voltar a um tempo de ditadura. Ainda há as raízes do autoritarismo que começa com a recolha de livros e depois com a queima de livros e depois com a prisão de pessoas, com o desaparecimento de pessoas e assim por diante”, reflete.
O ato provocou uma reação proporcional: Tenório recebeu centenas de mensagens de apoio, “O Avesso da Pele” voltou às manchetes, e o interesse na obra cresceu ainda mais. A obra fechou 2024 no topo da lista dos livros mais emprestados pela Biblioteca Pública do Rio Grande do Sul e ganhou novos fãs, muitos deles ainda na adolescência.
Escrita ível 2h5t1y
A escrita de Tenório é propositadamente ível, capaz de engajar leitores de diferentes formações literárias, sem abrir mão de assuntos espinhosos e protagonistas que são íveis de falhas, inquietações e atitudes ambíguas.
“É uma decisão que eu tomei desde o meu primeiro livro, ‘O Beijo na Parede’ [publicado em 2014], de oferecer uma linguagem que chegue naquela pessoa que talvez nunca tenha lido um livro na vida. Ao mesmo tempo, oferecer uma narrativa profunda, com reflexão social e racial. Mas, sobretudo, contar uma história”, explica.
Eu fico muito surpreso quando vejo jovens de 14, 15 anos, bastante conscientes, que leram os meus livros, e já fazem uma reflexão. Eu, na idade deles, não fazia ideia do que era uma pessoa antirracista, por exemplo.
Essa aproximação com a juventude teve início nos dez anos em que atuou como professor de literatura na rede pública de Porto Alegre. “A minha escola de escritores foi a sala de aula, trabalhando com os textos e com aquela realidade, às vezes muito dura, com os alunos”, afirma. Hoje em dia, entre as feiras literárias, as colunas que escreve para o UOL e outros compromissos, sobra pouco tempo para o ensino. “Sinto falta da sala de aula, mas não da instituição escola”, ite. “Se pudesse ter só a sala de aula, sem as burocracias, seria maravilhoso.”
Seu compromisso de formar leitores, porém, segue firme através dos livros que escreve. Nem mesmo a notícia de que o Brasil perdeu 7 milhões de leitores nos últimos dez anos, muitos deles entregues a outras formas de ar o tempo, o desanima. “Eu vejo os jovens e adolescentes não lendo exatamente o que a gente considera literatura, mas lendo outras coisas”, diz. “Eu acho que a gente também deve levar isso em consideração. Se esses adolescentes, jovens, estão nas redes sociais, eles não estão só assistindo vídeos. Eles também estão lendo coisas. Eles também estão escrevendo coisas.”
Ainda assim, sugere uma série de ações efetivas que podem ajudar a mudar esse panorama: “Eu acho que a gente precisa investir mais no o aos livros, criar uma cultura do livro, com mais livrarias, menos farmácia, que a gente tenha bibliotecas públicas próximas da casa das pessoas, que os livros estejam nos metrôs, nos lugares de agem, precisa estar no cotidiano das pessoas.”
Jeferson Tenório sabe bem a diferença que isso pode fazer. Agora, vive para espalhar o poder da boa literatura para os filhos, e para todo mundo que entra em contato com sua trajetória.