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Vânia Borges Carvalho, de 56 anos, posa ao lado de seu marido e filhos, mortos em acidente em 22 de dezembro de 2010  Foto: Arquivo pessoal

Ela reconstruiu a vida após perder o marido e os quatro filhos em acidente: 'O que paralisa é o medo' 4a3g6i

Vânia Borges Carvalho viajava rumo a Fortaleza com a família quando o carro em que ela estava colidiu com outro veículo na BR-020 e explodiu 4j2d4

Imagem: Arquivo pessoal
  • Sofia Pilagallo Sofia Pilagallo
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29 mai 2025 - 04h59
(atualizado em 30/5/2025 às 19h48)

"É preciso saber viver". A música, de Roberto e Erasmo Carlos, desperta a saudade em Vânia Borges Carvalho, de 56 anos. Era a favorita de Pedro, um de seus quatro filhos. Ele morreu aos nove anos, em um acidente de carro em 22 de dezembro de 2010. 2l2140

Pedro não foi a única vítima da tragédia. Os três outros filhos de Vânia --Júlia Ádyla, de 5 anos, Anna Beatriz, de 12, e Rayran, de 16-- além do marido, Raimundo Jarismar, de 46, também morreram naquele dia.

Vânia, natural de Brasília, viajava rumo a Fortaleza com a família quando o carro em que ela estava colidiu com outro veículo na rodovia BR-020, causando uma explosão. Única sobrevivente, ela toma o título da música como um conselho involuntário: é preciso saber viver, é preciso reconstruir a vida.

O acidente é um exemplo extremo de uma estatística sinistra no Brasil. Segundo a Polícia Rodoviária, 6.160 pessoas morreram e 84.526 ficaram feridas em 73.156 acidentes no ano ado nas estradas federais. Neste Maio Amarelo, mês da conscientização sobre a segurança no trânsito, Vânia conta sua história ao Terra:

Rayran, filho de Vânia Borges Carvalho, tinha 16 anos
Rayran, filho de Vânia Borges Carvalho, tinha 16 anos
Foto: Arquivo pessoal

"Era época das férias de verão. O céu estava um azul esplêndido e o sol radiante logo cedo. Essa imagem não sai da minha cabeça.

Naquele dia, Jarinho e eu saímos de casa por volta das oito horas da manhã, junto com Julinha, Pedro e Ana Beatriz para ir à escola do nosso filho mais velho, Rayran. Ele fazia uma prova de recuperação.

Paramos em frente à escola e ficamos aguardando Rayran do lado de fora. De lá, pegaríamos a BR-020 para viajar a Barro Preto, uma praia em Fortaleza, onde ficaríamos por 30 dias com os familiares do Jarinho.

De dentro do carro, vi quando Rayran saiu da escola. Ele abraçou os colegas, todo saltitante. Meu filho era um menino bem-humorado, cheio de talentos e muito querido. No meio daquela alegria toda, ele veio ao nosso encontro.

Nos acomodamos no carro, colocamos o cinto e pegamos a saída para a BR-020. Nas duas viagens anteriores que fizéramos, em 2005 e 2007, tínhamos um carro mais ou menos confortável, um Corsa Wagon de quatro portas.

Em 2010, com as crianças mais crescidas, compramos um carro maior: um Zafira com sete assentos. Jarinho estava ao volante, eu no banco do ageiro e nossos filhos nos bancos de trás.

Essa viagem foi diferente das outras. Nós sempre tínhamos o costume de ligar o rádio e ir cantarolando pela estrada. Nesse dia, estavam todos ensimesmados, cada um no seu próprio mundinho.

Logo no início da viagem, paramos para abastecer no Posto Rosário. Me recordo que Jarinho segurou minha mão e disse: 'Vaninha, essa vai ser a viagem dos meus sonhos.' Eu respondi: 'Tenho certeza, Jarinho --dos nossos sonhos.' Então ele beijou minha mão e trocamos juras de amor.

Um amigo do Jarinho, que viajava sozinho no carro dele, nos acompanhava na estrada. Ele havia nos convidado para conhecer a fazenda dele em Gandu, na Bahia. Essa seria nossa primeira parada.

Como não tínhamos muita intimidade com o trecho de Correntina [cidade na Bahia], acabamos ando o trevo. Olhei pelo retrovisor, vi o amigo do Jairinho acenando para voltarmos e avisei meu marido. Retornamos.

"Quando chegamos na altura do trevo, só me recordo de Jarinho dizer: 'O carro não responde. É como se as rodas estivessem travadas.' Ele mal terminou de falar e senti um baque. Era um Voyage que vinha a 150 km/h"

Os dois veículos entraram em combustão. Desmaiei logo após o impacto, mas rapidamente retomei a consciência. Quando olhei para o lado, Jarinho estava preso ao volante, todo chamuscado por causa da fuligem. Eu o chacoalhei e disse: 'Jarinho, o carro está pegando fogo, acorda. Vamos, os nossos filhos.'

Olhei para trás e só vi Pedrinho e Ana Beatriz, com o rosto muito ensanguentado. Não vi Julia nem Rayran. Tentei acordar Jarinho novamente, mas ele não reagiu. Então, ei por cima dele e pulei a janela. Ali começava minha saga de sobrevivência.

Vânia e o marido, Raimundo Jarismar, o 'Jarinho'
Vânia e o marido, Raimundo Jarismar, o 'Jarinho'
Foto: Arquivo pessoal

Eu não sei o que doía mais naquele momento --o asfalto extremamente quente ou as queimaduras. Com a força que me restava, tentei voltar ao carro para tentar salvar Ana Beatriz. Foi quando o fogo avançou voraz.

Na tentativa de abrir a porta, fiquei com uma sequela na mão direita. Até hoje, tenho colegas que me perguntam: 'Vânia, por que você não faz uma plástica na mão?' Eu respondo que não quero. Essa mão carrega uma história de amor.

Em dado momento, um senhor se aproximou de mim e disse: 'Consegui tirar [do carro] um filho seu'. Era Pedro. Fui rastejando até ele e vi que meu filho estava perfeito --apenas com um corte perto dos olhos. Pensei: 'Está só desmaiado.'

Continuei a me arrastar pelo asfalto, tentando encontrar meus outros filhos. Mais à frente, vi Jarinho. Segurei a mão dele e disse: 'Jarinho, os nossos filhos'. Então ele respondeu: 'Vaninha, não posso fazer mais nada.'

Naquele momento, Jairinho desencarnava, embora eu não soubesse disso ainda. A poucos metros dali, minhas duas filhas também tinham partido.

O socorro demorou muito a chegar. Já era quase noite. Eu estava ao lado do Rayran, muito queimada e machucada, mas tranquila. Ele, pelo contrário, estava agitado e muito nervoso. Eu disse: 'Rayran, meu filho, estamos perdendo nossas meninas.'

Rayran então disse: 'Não, mãe. Segura minha mão. Vamos rezar o Pai Nosso'. Esse momento me emociona muito. Naquele instante de tanta dor, ele teve a serenidade de pedir a minha mão.

Outro momento que me marcou foi quando Rayran suplicou por água, e um bombeiro, muito emocionado, pediu à enfermeira que pingasse três gotinhas de água na boca dele. A orientação era que meu filho ficasse em jejum, caso precisasse fazer uma cirurgia de emergência. Esse foi o último contato que tive com ele.

'Não tem mais ninguém aqui' 6hi5z

Chegando ao Hospital Regional da Asa Norte, em Brasília, nos deparamos com muitas pessoas, conhecidas e anônimas, que aguardavam a nossa chegada. Nunca tinha visto tanta gente reunida.

Fachada do Hospital Regional da Asa Norte, em Brasília, onde Vânia ficou internada
Fachada do Hospital Regional da Asa Norte, em Brasília, onde Vânia ficou internada
Foto: Sandro Araújo/Agência Saúde-DF

Me recordo da minha mãe se aproximando de mim naquele momento. Imagino o susto que ela deve ter levado ao me ver. Tive 70% do corpo queimado, com queimaduras de segundo e terceiro grau.

Fiquei internada por 90 dias. Durante esse tempo, tive a ilusão de que Jarinho, Rayran e Pedrinho ainda estivessem vivos. Eu perguntava por eles a colegas que vinham me visitar, mas eles mal respondiam e logo saíam do quarto. Aquilo me intrigava.

Em 11 de março de 2011, tive alta do hospital. Então, e só então, descobri que tinha perdido toda a minha família. Os médicos haviam advertido meus familiares e amigos que meu quadro era muito delicado e que, portanto, eu não poderia saber o que tinha acontecido.

Quem me deu a notícia foi minha mãe. Ela disse: 'Vânia, preciso conversar com você.' Respondi: 'O que foi, mãe? A senhora parece tensa.'

"Então minha mãe me olhou nos olhos e disse: 'Olha, filha, não tem mais ninguém aqui"

Respondi: 'Como assim?' 'Não tem mais ninguém', ela reforçou. 'Jarinho, Rayran, Pedro, todos já foram sepultados'. Nos abraçamos e choramos muito. Então falei: 'Vamos seguir.'

Os médicos haviam alertado a minha família sobre como eu poderia reagir à notícia. Eles disseram: 'Fiquem atentos a qualquer sinal. É um choque muito grande que a Vânia vai ter. Ela pode ter uma parada cardíaca, atentar contra a própria vida. Pode enlouquecer e ir parar no manicômio. A qualquer sinal, venham correndo para a emergência.'

Graças a Deus, sou muito lúcida. Não tomo remédio para dormir e durmo a noite toda. Se você me pedir um analgésico, vou ficar devendo. Não tenho nada. Acredito muito que a ciência anda de mãos dadas com a espiritualidade. Acho que, antes de tratar o corpo, é preciso tratar a alma.

Uma montagem de Vânia, o marido, Raimundo Jarismar, o 'Jarinho', e os quatro filhos do casal; da esquerda para a direita: Ana Julia, Ana Beatriz, Pedro e Rayran
Uma montagem de Vânia, o marido, Raimundo Jarismar, o 'Jarinho', e os quatro filhos do casal; da esquerda para a direita: Ana Julia, Ana Beatriz, Pedro e Rayran
Foto: Arquivo pessoal

Depois do acidente, falei com Deus e disse: 'Mostre-me o que eu posso fazer a partir de todas essas ruínas na minha vida.' Então, comecei a receber telefonemas de pessoas que aram por perdas e estavam sofrendo. ei a me envolver com a dor dessas pessoas. Então entendi que a caminhada de dor já não poderia mais existir.

Os sinais me diziam que eu precisava agora ter uma caminhada de amor por aquelas pessoas. Algumas me diziam assim: 'Vânia, eu também devolvi meu filho, mas a sua dor é maior que a minha porque você devolveu quatro.' Eu respondia: 'Não há dor menor ou maior. Dores são dores. A diferença está em como você as encara.'

Em nenhum momento, me revoltei pelo que aconteceu comigo. Nunca questionei Deus: 'Por que comigo?' Nunca abri a boca para falar essas palavras.

"Já me perguntaram: 'Vânia, se você pudesse escolher um dos cinco para estar com você hoje, quem você escolheria?' Respondi: ‘Nenhum"

Às vezes, em meus momentos a sós, fico me perguntando como teria sido se Jarinho tivesse sobrevivido. Ele teria dado conta de continuar ao meu lado sem nenhum filho à sua volta? E os outros? Como ficariam sem os irmãos e sem o pai?

Rayran, se tivesse sobrevivido, teria ficado em estado vegetativo. Pedrinho, por sua vez, teria ficado na cadeira de rodas. Como eu daria conta de ver aqueles meninos cheios de vida vegetando numa cama ou sem poder andar?

E as nossas meninas lindas, desfiguradas pelo fogo, como lidariam com o preconceito? Se não tivessem uma visão muito positiva sobre a situação, seria complicado. Então, depois de muito analisar e refletir, me libertei.

'O que paralisa é o medo' 3h1al

Em 2013, voltei a dirigir. Jarinho e eu ainda tínhamos aquele outro carro, o Corsa Wagon, que estávamos guardando para dar ao Rayran. Eu estava com a habilitação vencida. Mesmo assim, dirigi até a casa da minha cunhada, em Sobradinho. Não tive medo nenhum. Então percebi que dava conta de mais coisas.

Naquele mesmo ano, em mais um ato de renúncia e coragem, também retornei ao trabalho. Eu era professora na escola onde meus filhos estudavam e voltei a lecionar nesse mesmo local.

Em 2014, lancei o livro Pérolas no asfalto. Por causa de um traumatismo cranioencefálico grave, consequência do acidente, tive algumas perdas de memória. Ainda assim, curiosamente, todos os detalhes da história foram preservados no texto. Ali foi minha catarse.

Por fim, em 2016, saí da casa dos meus pais e voltei para onde eu morava com a minha família. Troquei janelas, portas, cerâmicas. Mudei a cor, fiz novas pinturas. Como num quadro, mudei toda a moldura, mas mantive a tela.

"Cada canto da casa tinha a presença deles: a moto do Jarinho, a bicicleta da Julia, o skate do Pedrinho, o violão do Rayran. Deixei tudo como estava. Morei quatro anos nessa casa, sozinha, para ver se eu dava conta. E dei. Costumo dizer em minhas palestras que o que paralisa é o medo. É preciso enfrentá-lo"

Nos aniversários deles, procuro reunir os amigos da família e dos meus filhos. Muitos já são casados, têm filhos. Nós conversamos, relembramos, nos abraçamos e choramos. Eu volto revigorada, pronta para novas batalhas. Não me fechei para a vida.

Em 2014, quando voltei a sair com colegas, ei por um momento muito difícil. Sentia culpa pelos meus risos fáceis em uma mesa de bar. Pensava: 'Como assim, estou sorrindo? Sem eles?' Era como se estivesse traindo a memória do Jarinho.

Um dia, me dei conta de que eu optei por continuar vivendo. Sendo assim, eu deveria viver da melhor maneira possível --sendo feliz e deixando felicidade por onde o. Acho que é essa a postura que eles gostariam de ver em mim."

Fonte: Redação Terra
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