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'Minha prima abusou de mim e só hoje vejo como foi problemático': o tabu da violência sexual contra meninos e homens no Brasil 556q6w

Por dia, 27 vítimas masculinas registram casos na polícia, segundo dados de 2023. Para especialistas, é preciso falar do tema para romper estigma e aumentar denúncias 2e3828

3 jun 2025 - 16h47
(atualizado em 4/6/2025 às 06h37)
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Para especialistas, o estigma contribui para que haja subnotificação no caso de violência sexual contra homens
Para especialistas, o estigma contribui para que haja subnotificação no caso de violência sexual contra homens
Foto: Camila Rosa / BBC News Brasil

Os churrascos de domingo na casa da avó materna eram o momento preferido de André. Era ali que ele, aos 7 anos, encontrava a família, ouvia samba com os tios e se divertia com as outras crianças da vizinhança. Um acontecimento, no entanto, estaria sempre presente nas lembranças: foi naquela mesma casa que sofreu violência sexual pela prima mais velha, que tinha 15 anos. 1y5u5i

Hoje, aos 29, ele conta que as memórias da época são difusas. Mas diz não ter dúvidas de que os abusos aconteciam com frequência, sempre longe do olhar dos adultos.

No quarto escuro, a prima dizia que era o momento de brincar de dormir: "Hoje, quando penso que fui introduzido ao sexo tão cedo assim, vejo o quanto tudo isso foi problemático. Mas sinto que nós, homens, não identificamos situações assim tão facilmente", diz.

O caso de André - cujo nome foi trocado a seu pedido assim como o das demais vítimas citadas nesta reportagem - está longe de ser isolado.

Em média, 27 meninos e homens são vítimas de estupro a cada dia no Brasil, segundo os dados de 2023 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Respondem por 11,8 % dos casos totais de violência sexual notificados. No caso de mulheres e meninas são 88,2% do total e 203 por dia.

Se todos os casos de violência sexual padecem de serem menos reportados às autoridades, os especialistas dizem que há, no caso masculino, dificuldades específicas na hora de identificar, responsabilizar e, sobretudo, prevenir esse tipo de crime.

Assim como no caso das mulheres, a maioria das vítimas masculinas têm entre 3 e 13 anos, sendo que 65,1% das violências acontecem dentro de casa, tendo como algozes os familiares (63,3%) ou pessoas conhecidas (22,2%).

Em uma cultura que não enxerga meninos e homens como potenciais vítimas de violência, seja importunação sexual, assédio ou estupro, o silêncio segue sendo uma punição extra, com danos por toda a vida, segundo psicólogos.

Dentro de casa, por pessoas conhecidas w4g1x

Das quatro situações de abuso que Jorge conta ter sido vítima, três foram com pessoas conhecidas. O primeiro assédio aconteceu ainda na infância, aos 10 anos. Ele estranhou quando um homem que conhecia, mas com quem não tinha nenhuma intimidade, pediu que ele sentasse em seu colo.

Jorge estava em um carro, numa estrada deserta e quem dirigia era o mecânico da oficina que funcionava abaixo da sua casa. Naquela tarde, o homem o convidou para aprender a dirigir.

Após conduzir o veículo até um local afastado e estacionar, o adulto ficou "próximo demais", conta Jorge. Ainda hoje, lembra de pedir para ir embora e do desconforto que sentiu, mas não consegue nomear o que viveu como uma violência.

"É sempre nebuloso relembrar essa cena, não tínhamos muita intimidade e eu não era uma criança tão pequena a ponto de não alcançar o pedal do carro", conta.

Aos 12, estava sozinho em casa, quando um colega, quatro anos mais velho, com quem costumava brincar na rua, se convidou para entrar. O jovem perguntou se Jorge já havia beijado alguém. "Ele insistiu que queria me ensinar, mesmo depois de eu dizer que não queria aprender", relembra.

"Foi tudo muito estranho. Me senti muito vulnerável. Mas só mais velho percebi que aquilo foi um abuso. Quando lembro, sinto muita raiva e vergonha por aquele beijo ter acontecido."

A situação mais recente foi em sua própria casa, com um colega de trabalho. Os dois tinham ido juntos a um happy hour para comemorar a entrega de um projeto importante e, depois, decidiram ir para a casa de Jorge.

"A ideia era apenas beber mais algumas cervejas e continuar o papo, mas, na minha casa, ele começou a chegar muito próximo, ou a mão em mim e até se ajoelhou insistindo para que ficássemos", conta.

"Eu disse a ele que, para mantermos nossa relação numa boa, era melhor que ele parasse por ali, assim eu também fingiria que nada tinha acontecido", relembra Jorge.

O rapaz também ou por uma situação de importunação sexual no transporte público. Em 2022, estava acomodado próximo à janela do ônibus, quando um homem mais velho sentou ao seu lado no fundo do coletivo. O homem esbarrava o joelho em sua perna repetidamente.

Notando a movimentação estranha, Jorge pensou que seria assaltado, mas, assim que olhou para o lado, percebeu que o homem se masturbava. "Na hora eu não tive reação, só apertei o botão de parada do ônibus para descer e ele veio atrás de mim. Comecei a fazer um escândalo até que ele saiu correndo", relembra.

Por nova lei brasileira, centros de esporte são obrigados a ter protocolos de prevenção contra violência sexual
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Foto: Getty Images / BBC News Brasil

No esporte, com pessoas de confiança 33h3k

No caso de Silas, ex-jogador de futebol e hoje treinador, o risco de ser abusado estava no esporte.

"Desde a época que jogava no infantil de um time da capital paulista, em 1990, eu escutava rumores de que os treinadores aliciavam os jogadores. Comigo aconteceu em 1992, aos 17 anos, quando o treinador me chamou no vestiário e me convidou para ar um fim de semana em sua chácara. Eu já sabia da fama dele desde o [time] infantil. Peguei meu material e fui embora. Nunca mais o vi."

Silas conta que o técnico era discreto, mas os comentários sobre as investidas do profissional entre os colegas de equipe eram frequentes. Ele acredita que à época muitas pessoas sabiam das situações de assédio, mas não denunciaram por medo. "Ele era um cara influente, tinha contatos importantes. Se fosse hoje em dia, que o tema de assédio é mais discutido, com certeza ele rodava", comenta.

Hoje, aos 50 anos, ele diz que essa situação foi um divisor de águas para entender os limites da relação entre professor e aluno. "Aprendi que nem todos os ambientes são seguros e isso faz com que eu tenha ainda mais respeito pelos meus alunos."

A faixa etária das principais vítimas — meninos entre 5 e 9 anos — faz com que muitas dessas crianças sequer compreendam que estão sendo violentadas, o que reforça a necessidade de adultos atentos e ambientes esportivos seguros.

Para tentar coibir o problema, no ano ado, o governo federal alterou uma a Lei Geral do Esporte para incluir medidas de prevenção ao abuso sexual de atletas.

A legislação agora exige que clubes, escolinhas e entidades educacionais estabeleçam protocolos específicos para a prevenção e o combate à violência sexual, além de medidas claras de responsabilização.

Apesar dos avanços legais, especialistas alertam que a eficácia da norma dependerá da forma como será implementada, já que denúncias costumam ser ignoradas ou desacreditadas, principalmente quando envolvem figuras de autoridade.

Para os especialistas, a responsabilização de quem silencia diante de indícios de abuso — treinadores, dirigentes, colegas de equipe — é tão essencial quanto a punição dos autores diretos.

Por que os homens não denunciam? 4tii

Jorge relata ter vivido uma situação de violência sexual quando andava de ônibus
Jorge relata ter vivido uma situação de violência sexual quando andava de ônibus
Foto: Camila Rosa / BBC News Brasil

Os relatos de Jorge e André ouvidos nesta reportagem contêm elementos em comum: eles contam ter sentido vergonha, culpa, impotência e raiva, além de confusão sobre suas percepções. Em nenhum dos casos eles denunciaram as violências que sofreram.

"É forte falar que fui abusado pela minha prima, principalmente porque ainda convivo com ela. Nunca a denunciei. Sinto que o fato de ter sido uma mulher dificultou o meu entendimento como vítima porque tudo parecia uma grande brincadeira naquela idade", relata André.

Jorge, por sua vez, confidenciou uma das situações vividas, anos depois, para sua namorada da época: "Eu sempre pensei que esse não era um problema tão importante. Mulheres vivem situações de abuso e assédio sexual todos os dias e seguem suas vidas. Por que a minha vida pararia?"

Segundo especialistas, o pensamento de Jorge de que a violência "não era um problema tão importante" pode ser lido como um reflexo da minimização da violência sexual contra homens e meninos, que muitas vezes torna o silêncio a única resposta aceitável.

Por isso, a subnotificação é uma das maiores barreiras para compreender a real dimensão da violência contra homens e meninos, já que muitos casos nunca chegam às delegacias.

O tema é objeto de estudo do psicólogo Denis Gonçalves Ferreira, que foi um dos autores de um artigo acadêmico comparando as notificações feitas no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, com os registros policiais de casos de violência sexual contabilizados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

Publicado em 2025 na Revista da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, o levantamento analisa dados de 2018 e 2022.

Em 2018, foram registrados 5.086 casos violência sexual contra meninos e homens nos serviços de saúde, o Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação). No ano seguinte, seguiu crescendo, só retrocendendo na pandemia, por causa das limitações de o aos serviços. Em 2022, o dado mais recente, o salto foi ainda maior: 6.355 casos notificados — o maior número da série histórica e um aumento de 24,9% em relação à 2018.

No mesmo intervalo, os registros policiais de estupro e estupro de vulnerável cometidos contra meninos e homens, organizados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, seguiram outro caminho. Em 2018, foram 12.232 ocorrências registradas nas delegacias, mas houve queda nos anos seguintes. Em 2022, o número chegou a 8.467, uma queda de 30,8% em relação a 2018.

A comparação entre os dois sistemas evidencia uma contraste preocupante, de acordo com o pesquisador. O motivo é que, em geral, é no sistema de saúde que chegam os casos mais graves — situações que exigem atendimento médico imediato ou deixam marcas físicas evidentes — e era de se esperar que as denúncias na polícia crescessem também, por abranger casos de diversas gravidades.

"Os homens são criados para serem fortes, então, falar dessa situação [de violência sexual] é colocá-lo num lugar que ele não foi ensinado para estar, que é um lugar de vulnerabilidade", diz Gonçalves Ferreira.

Ele é também fundador do projeto Memórias Masculinas, que oferece plantões psicológicos gratuitos a homens vítimas de violência em uma página do Instagram e um site. O projeto diz receber em média cerca de 20 novos contatos por mês .

Para o psicólogo, a subnotificação tem múltiplas causas: desde o medo de serem vistos como homossexuais até a dificuldade de reconhecer que o que viveram foi, de fato, uma violência.

Soma-se a isso a resposta fisiológica durante a agressão, como a ereção, que pode confundir a vítima.

"O corpo responder com ereção cria no imaginário da vítima que ela gostou daquela interação [...] então ele pode pensar que não foi tão violento assim", explica o psicólogo.

Para André, o fato de ter sido violentado por uma mulher dificultou seu entendimento, já que foi ensinado durante toda a vida que um homem precisa ser viril e estar sempre pronto para o sexo.

"ei a adolescência vendo meus amigos ficando com mulheres muito mais velhas e contando vantagem. Até pouco tempo atrás, por exemplo, eu relevava quando minhas amigas apertavam minha bunda do nada, mas sabemos que se fosse o contrário a leitura da situação seria outra", reflete.

Além disso, para ele, a pornografia atua como uma vilã, com uma narrativa que não só normaliza a violência, como a faz desejável.

"Se uma mulher chega em um cara, ele não pode nem parecer assustado, e ainda precisa corresponder, mesmo que não esteja com vontade, porque ela pode sair falando que ele é mole ou até mesmo gay por não querer ficar com ela", diz André.

Para Christian Dunker, psicanalista e professor Titular em Psicanálise e Psicopatologia do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), a noção deturpada de que, quanto antes os meninos terem contato com o erótico, melhor para o seu desenvolvimento, contribui para a violência.

Essa pressão social atribuída ao homem gera, por exemplo, a prática de incentivar adolescentes, quando completam 18 anos, a irem até uma casa de prostituição para iniciação sexual, como um rito de agem.

Dunker diz que essa introdução precoce de meninos e adolescentes à vida sexual se torna ainda mais perigosa uma vez que é legitimada pelos próprios pais.

"Levar o filho ao bordel e forçar primeiros encontros com prostitutas mais velhas são vistos como um atestado de virilidade para os pais, quando na verdade o que está acontecendo ali é uma violência", pondera Dunker.

Falar sobre violência sexual na terapia é parte de um processo que costuma ser longo. Dunker comenta que, por mais que seja bastante comum este tipo de relato dentro dos consultórios, é muito raro que seja uma queixa primária, ou seja, que ela já apereça nos primeiros encontros do tratamento.

"É comum que o tema apareça depois que já se estabeleceu uma relação de confiança entre paciente e psicólogo. Depois de relembrar experiências infantis eles identificam situações de coerção e violência que foram matizadas pela ideia de que aquilo era natural e aceitável", afirma ele, autor A arte de amar: Uma anatomia de afetos, emoções e sentimentos (Record, 2024).

A influência da mídia e redes sociais 6238

O personagem principal da série é baseado na experiência de Richard Gadd, que foi vítima de abuso no começo da carreira
O personagem principal da série é baseado na experiência de Richard Gadd, que foi vítima de abuso no começo da carreira
Foto: Netflix / BBC News Brasil

Homens ouvidos pela reportagem dizem ter compreendido a violência contra eles a partir de histórias de abusos contados por mulheres — amigas, companheiras — ou relatos na mídia e redes sociais, além de obras de ficção.

Uma produção recente da Netflix contribuiu para o debate sobre violência sexual e masculinidades: Bebê Rena (2024).

Baseada na história real do comediante Richard Gadd, ela mostra um homem vítima de abuso sexual no começo da carreira, crime cometido por um homem.

Mostra ainda o mesmo personagem tentando denunciar uma agressora mulher que o perseguia.

No Brasil, o humorista Marcelo Adnet já falou publicamente que foi vítima de violência sexual quando tinha 5 anos. "É uma coisa que ficou lá para trás, mas você tem que falar, você precisa falar para conscientizar os outros", disse ele ao podcast Podpah em 2023.

"Socialmente falando, as emoções dos homens são marginalizadas. Eles jogam bola juntos, vão ao bar, dão risada, mas não são uma rede de solidariedade, não podem abrir o coração quando querem. Falta esse senso de comum entre os homens", analisa o psicólogo Denis Gonçalves Ferreira.

Gonçalves Ferreira lembra que, no artigo publicado na Revista de Saúde Pública, ele e os demais autores citam dados de que homens que sofreram violência sexual têm maior tendência ao uso de drogas, isolamento social, transtorno de estresse pós-traumático e ideação suicida.

"Não consigo enxergar um momento em que eu me sentisse confortável para conversar sobre isso [as violências] com meus amigos, é muito mais fácil relatar situações assim com mulheres porque sabemos que, infelizmente, elas têm histórias parecidas, compartilham do mesmo sentimento e sabem acolher", pontua Jorge, sobre as experiências de abuso que viveu.

"A saída para reverter essa situação é renovar o nosso olhar sobre a violência sexual para que a discussão também alcance os homens", conclui Dunker.

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