Artista, produtor e ativista, Heitor Werneck foi um dos destaques da escola de samba Estrela do Terceiro Milênio, 8ª colocada na classificação do Grupo Especial de São Paulo. 2i5j6c
O enredo “Muito Além do Arco-Íris - Tire o Preconceito do Caminho que nós Vamos ar com Amor” foi um grito por respeito e liberdade à comunidade LGBTQIAPN+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Queer, Intersexo, Assexuais, Pan, Não-binárias e mais).
“Eu respeito a sua crença / Mas não chame de doença, sentimento natural / Não há mal que seja eterno / Que vá pro inferno a sua moral”, diz trecho do samba-enredo cantado no Anhembi.
Principal nome do fetichismo no Brasil, Werneck conversou com a coluna a respeito da expansão da prática e do impacto do conservadorismo no Carnaval.
Muita gente acha que os desfiles encaretaram devido ao politicamente correto. Por exemplo, se vê menos nudez e referências ao sexo. Concorda?
Concordo plenamente. Virou ‘moral e bons costumes’, com medo de famílias conservadoras reclamarem ou de jurados moralistas, que nem são de Carnaval, e desmerecem o trabalho e a liberdade das comunidades que podem se expressar na avenida. Esses jurados adoram tirar pontos a partir de qualquer situação que fira a moral ditada por eles mesmos.
Qual a importância do enredo da Terceiro Milênio, pró-diversidade, e do carro alegórico onde você estava, representando o fetichismo, que ainda é tabu para muita gente?
Mostrar a história LGBT é valorizar militantes e artistas desta comunidade, que é explorada comercialmente pelas marcas apenas no mês de junho (época da Parada Gay de São Paulo), não recebe apoio no resto do ano. A escola foi corajosa e honesta com a comunidade. O carnavalesco Murilo Lobo chamou a todos para mostrar o que estava bolando no enredo e aceitou sugestões. É histórico. Linda iniciativa.
Como colaborou?
Numa das visitas, eu apontei que a letra ‘k’, de kinky (termo para fantasias ou práticas sexuais não convencionais), e o ‘q’ de queer (pessoa fora da norma heteronormativa), não estavam sendo falados no enredo. Ele ligou no outro dia e me deu de presente o destaque em um carro alegórico. Fiquei muito emocionado, pois levar o fetiche para a avenida não como fantasia, mas com personagens reais da cena fetichista de São Paulo, foi uma atitude corajosa da escola, mostrando o compromisso que eles propam.
Os fetichistas estão saindo do armário?
O fetiche é uma comunidade que está crescendo no Brasil. Desde 1994, eu o insiro em novelas, filmes, jornais, museus. Mostrá-lo num desfile no sambódromo foi outra responsabilidade. Nosso País é careta e preconceituoso, até dentro da própria comunidade. Por isso, considero importante que seja mostrado com elegância e por meio de pessoas que o praticam de verdade. Na avenida, vestidos com nossos adereços, vivemos literalmente o significado da palavra fetiche, que é encantar e seduzir.
Essa festa popular contribui para que os brasileiros vivam com mais liberdade suas fantasias sexuais?
O Carnaval é uma ocupação de espaço público de uma forma que a comunidade pode se expressar com dança e sedução. É um festival da carne, realizado de maneira artística. Uma comunidade oprimida se mostrando livre, feliz, unida e dançante.
O Carnaval ainda é uma festa transgressora ou foi contaminado por interesses econômicos que abafam o aspecto social da festa?
Continua transgressor. O capitalismo acaba subvertido, dando espaço para enredos mostrarem realidades de personagens às vezes desconhecidos. Por exemplo, temas que envolvem matrizes africanas, indianas, budistas e cristãs, de maneira respeitosa. Assistimos a corpos que geralmente não são retratados na mídia. Os músicos e sambistas serão sempre anárquicos. E o Carnaval emprega costureiras, bordadeiras, bailarinos, enfim, profissionais que são valorizados.
Quais foram suas fantasias mais ousadas em Carnaval?
Desfilei na Beija-Flor, no Rio, todo pintado de preto, usando apenas tapa-sexo e calçando coturno. Outra fantasia que amei foi usar uvas cobrindo a cueca. As frutas eram devoradas ao longo do desfile e eu as repunha. Representei um fauno (deus romano dos campos e rebanhos).
Antes, havia grandes eventos da comunidade LGBT+, como o Gala Gay no Rio. Por que as festas tradicionais acabaram?
Devido à desunião dentro da comunidade. A atual geração é vaidosa. Eles querem apenas ser instagramáveis, julgadores, canceladores. Sem alegria, só com mimimi e ódio. Buscam somente poder individual e seguidores. A arte está sendo destruída pelo ego. Mas há um projeto meu de produzir o Gala Gay em São Paulo. Este ano quase aconteceu. Vou tocar a ideia com uma cervejaria para o Carnaval do ano que vem.